De crianças a idosos, virou hábito diário usar celular para “tudo”, em todo lugar, inclusive nas salas de aula. O uso pelos alunos, aliás, preocupa. No Ceará, ele é proibido por lei desde 2008, e o Ministério da Educação (MEC) pretende estender o veto ao País – intenção que, para especialistas, é contestável.
Em entrevista coletiva concedida nesta sexta-feira (20), o ministro Camilo Santana defendeu que o uso individual do celular para ouros fins que não sejam pedagógicos tem sido “um prejuízo para a aprendizagem” para estudantes de todo o País. Segundo gestor, a ideia é proibir o uso dos aparelhos inclusive nos intervalos.
“O Governo Federal tem uma política de conectividade nas escolas. Nós queremos que todas as escolas tenham conectividade, tenham computador, mas para fins pedagógicos, para que essas ferramentas possam ser utilizadas para melhorar a aprendizagem dos nossos alunos. Para uso pessoal, a gente quer restringir ou em sala de aula, ou na própria escola, também nos intervalos. Isso está sendo uma discussão”, afirmou.
Professores, alunos e um profissional da saúde ouvidos pelo Diário do Nordeste reconhecem os impactos negativos do uso das telas desde cedo, mas apontam que é preciso debater sobre as possíveis — e saudáveis — formas de aliá-las ao ensino.
O professor Pedro Monteiro, que leciona para crianças e adolescentes na rede municipal de Fortaleza, lembra que o Ceará foi pioneiro nessa proibição, mas observa que a lei foi feita no período pré-smartphones. “E, no frigir dos ovos, não pegou, porque não tem fiscalização.”
O docente lembra que, durante a pandemia de covid-19, foram distribuídos tablets para estudantes da rede pública, aparelhos “que passaram a ser utilizados em sala de aula, viraram um recurso pedagógico e didático”.
“Hoje, não acho que proibir é a forma mais adequada. Eu sou um professor muito rígido, não permito o uso de celular na sala de aula: pegou, já mando guardar. Se usar, não estará prestando atenção na aula. Mas ocasionalmente faço uso para pesquisas entre os meninos que já têm acesso”, aponta.
Proibir ou liberar?
Apesar de apontar os potenciais do uso do celular de forma mediada e assistida pelo professor, como fonte de pesquisa e expansão dos conteúdos que estão nos livros, o docente reconhece os impactos da hiperconexão “não mediada”.
“No recreio, tem um problema: crianças estão perdendo o controle do próprio corpo porque deixam de brincar para ficar jogando. E o que estão fazendo na internet a gente não sabe. Podem estar ouvindo uma música ou acessando o ‘Jogo do Tigrinho’, apostando”, lamenta.
“O corpo é importante no processo do desenvolvimento físico e cognitivo, e a brincadeira está perdendo o lugar para tela. Isso me preocupa. Em sala de aula, tem a figura do adulto mediando a relação, então ele deve conseguir fazer o controle. Mas no intervalo não”, acrescenta Pedro.
O que acho que está acontecendo é um choque geracional entre professores que não nasceram com essa tecnologia e outra geração de crianças nativas digitais, que já veem a tecnologia como extensão da forma de atingir o conhecimento. Não acho que proibir é a forma mais adequada. Precisamos criar mecanismos para utilizar o aparelho em sala de aula.
O professor reforça que é um debate complexo, e que não deve ser resumido “à proibição ou à liberação total”. “Na educação, é preciso mediações. O Governo Federal deveria entender o aparelho como mecanismo e estimular uma formação continuada de professores, modelo EaD, para utilizar essa ferramenta em sala de aula”, sugere.
Por outro lado, ele observa que “esbarramos em outra questão: as diferenças de classes sociais. Existe uma realidade muito diversa entre os estudantes. E a criança que não tem acesso ao celular? Ela fica excluída”, pondera.
A professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará (UFC), Lis de Maria Martins, levanta o questionamento sobre a dicotomia entre proibição e restrição. “Eu diria que uma alternativa seria esse buscar um uso consciente e equilibrado a partir de um trabalho dialógico e integrado com os professores, escolas e as famílias”, defende.
Com pesquisas relacionadas à produção de material didático com dispositivos móveis e formação docente digital, entre outras temáticas, Martins afirma que é importante potencializar os equipamentos tecnológicos instalados nas escolas da rede pública de ensino, como laboratórios de informática.
“Para isso, a formação docente para e como o digital e o virtual torna-se indispensável como política educacional, movimento esse que já ocorreu em instituições da rede particular de ensino”, diz.
O médico João Borges, presidente da Sociedade Cearense de Pediatria (Socep), afirma que o impacto do “uso indiscriminado” de telas para o desenvolvimento cognitivo e social de crianças e adolescentes é um dos temas atualmente mais discutidos entre a categoria em reuniões e simpósios.
“Professores nos relatam que os alunos não conseguem mais ficar parados por 45 minutos, não interagem. Eles se levantam 3 a 4 vezes durante uma aula pedindo para ir ao banheiro, que é a forma de se movimentarem. Não conseguem se concentrar, existe um prejuízo cognitivo”, frisa.
O especialista em pediatria observa, por outro lado, que “a tecnologia está aí, não dá para impedirmos”. Assim, “proibir totalmente o uso de celular na escola não é a melhor saída”. João Borges opina que “é preciso racionalizar” esse uso em todos os espaços, desde a casa à sala de aula, o que exige o fortalecimento da aliança entre escola e família.
O contato de crianças com os aparelhos desde cedo e as consequências disso para o desenvolvimento sensorial, cognitivo, afetivo e espacial preocupam Lis de Maria Martins. A pesquisadora aponta que o debate sobre prejuízos e regulações também cabe à família, que deve ser alertada sobre os riscos dos celulares para crianças e jovens e regular horários de uso.